quarta-feira, maio 27, 2009
Rosto
Aqueles dias excluíam-me do sangue-frio. Prostrei-me diante de um espelho e encetei um primeiro esboço de cara imaginária. Efabulei que não me via e fingi que era um rosto sinalizando outra figura. Era manhã e toda a manhã me decompus, linha e ponto, até que descobrisse um vestígio de optimismo esclarecedor, consolado e duradouro. Deparava-me com sinais contraditórios, numa narrativa de rugas desconexas. Era já tarde de fogo quando silenciei os meus medos infantis. Pressentia que o olhar interrompia a tentativa de ensaio visual. Estava no mais completo estado de explosão e liberdade, mas sentia-me absorto ao infindável, aos númenos. Assinei uma declaração consciente, aspirando o invisível. Coleccionei dúvidas atabalhoadas, tontas e estranhas. Era já noite, com o corpo e a alma entregues ao cansaço do subtil, ao enfartamento da fome e da sede, e balbuciei que não voltaria mais a relativizar-me. Sabia que era insensato o meu ensaio. Loucura em desespero. Dirigi-me à janela e respirei uma única frase sufocante: “Sou o que sempre fui”. Não sei queimar mais os pulmões com a ausência do teu fumo.
Pintura: Rembrandt, Une fille à une fenêtre.
Lavrado por diesnox at quarta-feira, maio 27, 2009 | Permalink |
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