domingo, agosto 21, 2011
Guatemala, una puerta de acceso a la tierra de los mayas

Existem três cores nesta paleta real: o azul, o verde e o humano. No universo de todos os elementos, o azul são os lagos e lagoas, e também os mares, por onde os peixes sondam os cantos do desconhecido. Barcos há que interrompem o sono das espécies que se passeiam nas profundezas marinhas. O verde transporta-nos para a natureza, o selvagem, o geológico, as plantas e a fotossíntese. Converte-se o sol em oxigénio puro e é entre o solo e os ninhos dos pássaros que se detecta a continuidade do ciclo biológico. Ao humano cabe o domínio das artes e ciências. É a vida dessa criatura que Deus, a montanha e as estrelas nem sempre conseguem vigiar, porque o humano conhece o caminho da liberdade e, se esta é a sua característica inata, a beleza decorre do coração para o qual concorrem os fragmentos sagrados da alma, os sentimentos.
Para reproduzir uma parte das três cores, temos que iniciar uma viagem. Começa na Guatemala e se desta terra ouvirem falar, prefiram, com os vossos pés e sentidos, calcorreá-la in loco, entre o pó, o calor, a humidade tropical e a lição histórica.
Ponto de chegada: o humano. Não pretendo avançar com conclusões precipitadas, mas não podia de deixar dirigir aquela pergunta intrigante: como se chamam os meninos que engraxam sapatos nas ruas, rapazinhos de corpo franzino, sapatos enormes de biqueira larga, mãos calejadas pelo alcatrão e caixas de madeira que transportam em volta do Parque Central, junto à Fonte das Sereias? São “lustradores”, respondeu Francisco, o motorista da terra onde outrora os Maias divinizavam o culto, a natureza e a astronomia. Para mim, eram “niños lustradores”, crianças de rosto dócil que me gelaram os extremos da racionalidade. [Eu não estava à espera de ver meninos que, tendo abandonado a escola, contribuíam com o ganha-pão para o governo das suas casas, com muitos irmãos e irmãs. Pensei estar no Portugal dos anos 40 e 50]. Não levei sapatos de cabedal e, infelizmente, desapontei todos os que aguardavam pelo momento para em troca de um polimento de sapatos, recebiam um Quetzal que, mais tarde, daria para comprar pão, tortilha ou qualquer pedaço de matéria, doce ou salgada, disfarçando o estado mais cruel de sofrimento, a fome. Perdão, “niños” da enigmática Guatemala!

Olhando para os pontos cardeais, ora víamos Agua, Fuego e Acatenango. São os três vulcões que abraçam o horizonte e o infinito da cidade de Antígua. Imaginem três guardiães à entrada de um templo, mas à escala da capital seiscentista da América Central. São os titãs de um lago que os Espanhóis drenaram fazendo daquele vale o lugar central entre a faixa do Equador e “Los Gringos”.

Para conhecermos a história de Antigua, é imperioso visitar a Casa de Santo Domingo (actualmente um hotel-museu de um bom gosto inimaginável). Moram lá as marcas e as rugas de eras conhecidas e outras ocultas. Das peças herdadas dos Maias, Aztecas e demais povos engolidos pela civilização mais forte, aos restos mortais dos filhos ilegítimos que ali jazem secula seculorum. Na Casa de Santo Domingo podemos contemplar museu de encher o olho a antropólogos ou viajantes.

Fora de Antígua, a duas horas de “bus” ou dos “chicken bus” (devo chamar-lhe a sucata pesada importada da América, a fazer lembrar o School Bus dos Simpson), no meio de turistas embriagados pelo cansaço e pela descoberta, há o Lago Atitlán, que Aldous Huxley – asseguram os roteiros turísticos – descreveu em 1934 como um dos mais belos do Planeta. Tal e qual um admirável mundo novo, não é? Um lago que se pode atravessar ou de barco ou de canoa, circundado de terras baptizadas com os nomes de alguns apóstolos cristãos convertidos à condição de padroeiros locais. San Pedro, Santiago, San Lucas e San Marcos... Esqueçam o ordenamento urbano e absorvam os amontoados populacionais e aglomerados caóticos típicos da América Latina. À volta de uma casa, constroem-se mais três casas e em torno do betão e da fragilidade dos tijolos erguem-se paredes cobertas por chapas de zinco “marrom”.

Deixando o Lago Atitlán, prostramo-nos diante da rainha dos mercados de cores, cheiros e sabores. Tem um topónimo: Chichicastenango. Aqui, faz-se a síntese entre o que é Maia e o Cristianismo. Há igrejas muito despidas, altares de madeira cobertos de fumo secular, cera de velas que se agarram ao chão e aos passos dos homens. Apenas os santos vestem roupas que simbolizam a busca da protecção do sagrado [em Santiago Atitlán era ainda mais inconfundível a bênção no trajar os santos]. Pelas ruas de Chichi, as mulheres exibem os trajes herdeiros da cultura Maia (vinte e três no total).

Regatear preços em Chichi é, provavelmente, uma profissão de uma fé profana que exige algum engenho, para quem quer levar consigo todos os artefactos pelo preço de meia dúzia de tostões. Quase todos os objectos interessam-me. Tomemos como exemplo o caderno onde decidi esboçar este texto. Na primeira proposta, pediam-me 60 Quetzais (oito dólares) por apenas um bloco de apontamentos; na oferta final, consegui trazer dois por quarenta Quetzais. Nada mau, e uma vez mais, consegui ludibriar a universalidade da chinesice dos comerciantes experientes. Discutir preços é um gozo tremendo, e normalmente dou-me bem.

Na manhã do dia seguinte, eram oito horas e já as pernas aguentavam a subida de três mil metros em direcção ao cume do Volcán Pacaya, o vulcão das fúrias, a última das quais em 2010, com uma erupção que vitimou um “cameraman”. A alternativa para os sedentários ocidentais e inadaptados à altitude era o “taxi-horse” (o conceito é explícito: o cavalo faz o trabalho pelas pernas do homo sedentarius). Desta vez, os animais mereciam um pacto de amizade tácito: dispensamos os cavalos, porque o homem, se é burro para percorrer três mil metros para ver cinza, montanha e lava petrificada, tem que aguentar por sua conta e risco esse propósito. No entanto, havia mais do que cinza, montanha e lava petrificada: a paisagem junto ao calor do urso de magma, e o mistério do “fog” em redor dos vulcões, faziam acreditar na possibilidade de estarmos numa atmosfera rara. Os cães, em matilha, rapidamente se aproximam dos proto-alpinistas esgotados. Se dúvidas havia que o cansaço é também uma manifestação psicológica, a tarde ainda reservou uma visita guiada à cidade de Antigua. Três horas a reviver os acontecimentos e contos de um lugar em estado de mutação das forças da natureza. Não foram apenas os terramotos de 1773 ou de 1976 que pararam o tempo nesta terra – Antigua esteve abandonada durante vinte anos no século XVIII e quem lá chegou depois ficou com as propriedades e ruínas -, podemos relembrar episódios de um quotidiano peculiar: a Fonte das Sereias, na Praça Central, é o ponto geodésico da América Central (como o Meridiano Greenwich está para a longitude da Terra). A história daquela fonte é uma metáfora: temos a representação de mulheres com seios, deles jorra a água do chafariz que é uma homenagem às criadas que amamentavam os filhos das fidalgas. Querem ainda saber o que aconteceu a um jardineiro que teve um caso com a mulher de um honrado governador da cidade? Depois do regresso das aventuras pelas Américas, o governador, perante a afronta pública, fez desaparecer o guardador de jardins e “monjas blancas” – a flor da Guatemala - como Júpiter dos céus. Recentemente, foi encontrado um esqueleto, precisamente nas traseiras do palácio, e julga tratar-se do jardineiro de paradeiro incerto.

Há lugares que merecem todo o desgaste das solas dos sapatos. Primo, Tikal (fica a oito horas de carro ou a 45 minutos de avião da Cidade da Guatemala). O Parque Nacional do Tikal é um ex-libris da vida selvagem e, principalmente, da civilização Maia. Por entre o zumbido das cigarras e os guinchos dos “monos” – o barulho da selva assusta, sobretudo quando alterna entre a mescla de ruídos e o silêncio cavernal – podemos testemunhar o feito do povo Maia. Para os Gregos, até as coisas úteis deviam ser belas; para os Romanos, até as coisas belas deviam ser úteis. E, para os Maias, até as coisas belas, úteis e imponentes deviam ser uma fonte de ciência, ecologia e espiritualidade. Bienvenidos à dimensão que cruza o “underworld” com o “upper world”! Não fomos ver o nascer do sol a partir do Templo IV, restou-nos a energia para, já ao meio-dia solar, contemplarmos a ligação perfeita entre a floresta e as construções. Tikal, una tierra de leyendas?

Inspira-se e transpira-se agora para os lados de Yaxhá (Parque Nacional situado próximo das Flores). A experiência vivida em Yaxhá é, porventura, menos intensa que em Tikal, embora haja em Yaxhá uma ideia mais nítida sobre o que é uma pólis Maia. São dezenas de edifícios que descansam enterrados sob o manto de terra e vegetação da selva, que assim permanecem, supostamente, por não guardarem qualquer novidade. Há uma estrada que é vestígio fiel de uma calçada que há 1500 anos servia para ligar o palácio do governador ao mercado e demais templos. São trinta a quarenta metros de largura que impressionam pela proporção. Podemos escalar templos magníficos, o último dos quais, permite uma estonteante vista sobre a Lagoa de Yaxhá – ouvem-se os sons inauditos dos macacos incomodados com a invasão dos forasteiros. Yaxhá, à letra significa o papagaio verde, e foi abandonada no século X d.C..

E, na manhã seguinte, não havia mais tempo para viajar. Por agora, só existem três cores nesta paleta real: o azul, o verde e o humano.

[Algumas imagens aqui...]

 
Lavrado por diesnox at domingo, agosto 21, 2011 | Permalink |


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