sexta-feira, setembro 29, 2006
como tudo o que começo e nunca acabo...
13h. O corpo desperta sozinho. Os vapores alcoolizados da noite anterior ainda viajam dentro do estômago, subindo suavemente até serem expulsos pela boca. O desagradável sabor a ressaca, a ligeira dor de cabeça e a vontade de ficar na cama contrastam com uma estranha boa disposição. Play. A repentina dose de adrenalina positiva injectada pelo som de uma canção de Divine Comedy faz com que Mário se levante, com uma energia fora do comum para um sábado. I fall for this season every time, When it's hot and everybody smiles, I can't help myself, I'm in love with the summertime, canta, com irónica alegria, Neil Hannon. Banho quente. Muito quente, com final frio. Muito frio. O negro da roupa assenta-lhe como uma luva à pele branca da cara. Dá-lhe profundidade intelectual, pensa! Já cansado do bom humor muda de disco para equilibrar a mente. Aprendera a não confiar demasiado na felicidade. Aprendera a não confiar demasiado.

Sai de casa. Apenas dois lances de escada, um espelho ameaçador e uma porta pesada separam-no da longa rua molhada. Avança rápido, com uma passada controlada e confiante. Desvia-se dos transeuntes. Vai contando os passos até ao destino final. Um velho café com ares de respirar a memória da rua.

Conhece o empregado de balcão, repetindo-se o ritual diário sem palavras que transforma o gesto de cabeça num café. Sem açúcar.

Entre notícias, a vontade de recuperar um vício há muito deixado e a borra de café, onde um futuro se espelha indefinido e indecifrável, vai-se lembrando do amigo. Vivia na eterna Lisboa triste, da viagem de cacilheiro onde a silhueta das sete colinas adormece, em tons de laranja, ao ritmo de um sol preguiçoso, sem vontade de a abandonar ao acaso.

Sem resistir mais, pede um cigarro à fumadora compulsiva da mesa ao lado. Obrigado. Para essa decisão também contribuíra a figura estilizada da mulher, com uma perna debaixo do rabo e cabeça apoiada sobre dois dedos, enquanto o polegar acariciava o aparentemente delicioso lóbulo da orelha.

Detestava a cidade, dizia-lhe, constantemente, Hugo: a impessoalidade, a tristeza nos olhos dos passageiros do metro, o insignificância que tudo tinha à sua volta. Mário respondia-lhe que os significados não eram mais do que a importância que uma pessoa dava a um objecto. Mário, adorava Lisboa. Não era só a luz e os passeios por Alfama, subindo até ao Castelo onde a vista contemplava uma cidade de bairros e destinos. Eram as ruas de calçada, era o velho eléctrico, era a roupa estendida no Bairro Alto, era o homem elefante do Rossio. Eram os loucos. Lisboa era provavelmente a cidade com mais loucos por metro quadrado que conhecia. O medo e a ternura que esses seres deambulantes e de discursos surrealistas lhe criavam, resultavam essenciais para se sentir normal. Ao mesmo tempo era invadido por um secreto desejo de alguma vez chegar a ser um deles.
 
Lavrado por xico at sexta-feira, setembro 29, 2006 | Permalink |


3 Comments:


At 12:22 da tarde, Anonymous Anónimo

Já dizia o outro: "Sao os loucos de Lisboa, que nos fazem duvidar se a Terra gira ao contrário e os rios nascem no mar..."

 

At 3:14 da tarde, Blogger diesnox

A loucura é a forma mais lúcida de se levar a brincar tanta aparência.

 

At 4:59 da tarde, Anonymous Anónimo

Acabou.Agora está tudo acabado.Seu vestido estampado dei a quem pudesse servir.Agora que eu não posso mais caber em ti.Não quero te ver.Dizem que você não quer mais me olhar.Como velhos desconhecidos.Se você não me escuta eu não vou te chamar.O amor que eu dei não foi o mesmo que eu vi acabar.O amor só mudou de cor.Agora já está desbotado.